23/05/2008

7 | GLOBALIZAÇÃO, ORDEM E DESORDEM

A globalização não é uma ordem, mas um processo de desconstituição da velha ordem.

A globalização não é ainda a transição para uma nova ordem mundial (embora possa levar a essa transição), mas uma desconstituição do mundo assentado na velha ordem do Estado-nação. Como diz Beck, é “uma sociedade mundial sem Estado mundial e sem governo mundial” (1). E, como assinala Giddens, “não se trata de uma ordem global conduzida por uma vontade humana coletiva” (2).

Para alguns, isso é um verdadeiro horror. Grande parte das reações fundamentalistas à globalização (e, na verdade, à globalidade), sobretudo as laicas, apóiam-se na idéia de ordem. São reações de fundo hobbesiano. Elas partem da idéia de que se não houver uma ordem pré-existente, previamente concebida e adotada por um sujeito particular que, falando em nome de um bem comum universal, que lhe dê o direito e a capacidade de impô-la, vertical e heteronomamente, às sociedades, será a volta à barbárie ou o caos. Como tal sujeito (único e exclusivo) é o Estado, trata-se de uma visão estadocêntrica que, não raro, reúne agentes de direita e de esquerda no mesmo pólo reativo.

As sociedades humanas são tomadas, por tal visão, como sociedades em estado de natureza (e uma natureza que se comporta darwinisticamente). Não existe sociedade civil a não ser como dominium do Estado. Deixadas a si mesmas, as sociedades se fragmentarão em virtude da ausência de uma instância superior reguladora dos conflitos gerados pela inexorável competição entre os humanos. Os conflitos não são regulados por processos políticos (ex parte populis), por modos de regulação societários e sim por sujeitos pretensamente situados acima da sociedade. O fim (isto é, o sentido) da política (ex parte principis) é a ordem (Hobbes) e não a liberdade (Spinoza). A competição é inerente à natureza humana, enquanto a cooperação é o resultado de um aprendizado (e de uma racionalização, visando obter vantagens a longo prazo). Em suma, a sociedade humana é incapaz de gerar ordem espontaneamente a partir da cooperação.

Ora, se a ordem não pode ser gerada espontaneamente, ela tem que ser imposta por alguém. O mal maior, então, não é a ordem injusta e sim a não-ordem. O caos é o demônio, a deusa-dragão Tiamat (a deusa do caos) que deve ser cortada por Marduk (o deus da ordem) com a espada que separa, que reintroduz continuamente todo tipo de compartimentação. Com efeito, grande parte das críticas estatistas, de direita ou de esquerda, à globalização são pautadas pelo tema do confronto com a desordem internacional gerada por tal processo. São reações à desordem, como se a ordem anterior e compartimentada do velho “sistema de muros” do Estado-nação fosse alguma maravilha ou algo que merecesse ser preservado. Mesmo os relatórios elaborados por segmentos da sociedade civil mundial (como os do Social Watch) adotam essa perspectiva, o que nos dá uma medida de quão profundamente estão fundeadas no subsolo dos preconceitos as visões ideológicas de boa parte dos que se opõem à globalização por medo de uma globalidade não-controlável, ou seja, por horror ao caos.

É bom repetir: a globalização não é um processo de constituição de uma nova ordem mundial. Talvez seja até mais por isso, e não porque tal processo estivesse construindo uma nova ordem injusta, que ela – ao ameaçar a velha ordem (o sistema de equilíbrio de poder internacional protagonizado pelo Estado-nação) sem colocar nada no lugar – aterrorize tanto os cavaleiros da ordem do Estado.

Todavia, a desarrumação do mundo que está sendo promovida pela globalização (com conseqüências adversas, por certo, para a qualidade de vida da maior parte da população mundial, pelo menos nesse primeiro momento) é, provavelmente, a única chance (ou uma chance) de desconstituir uma ordem injusta que impede a planetização, obstrui a vigência da democracia no plano internacional e possibilita a reprodução de enclaves autocráticos constituídos por Estados nacionais separados e escudados por velhas noções de soberania (3).

A opinião pública mundial não tem mais aceitado que, em nome da soberania, um Estado particular prenda, torture ou elimine suas minorias políticas, discrimine seus habitantes por razões religiosas, raciais ou de gênero, ou provoque catástrofes ambientais. Isso significa que uma nova cultura planetária está surgindo, impulsionada pelos novos movimentos sociais globais emergentes, em defesa da democracia e dos direitos humanos, das minorias sociais e do meio ambiente. A emersão desses novos movimentos sociais – democráticos, pacifistas, ecumênicos, feministas, ecológicos e comunitaristas – ampliou a participação popular, levando-a de uma perspectiva predominantemente econômica e corporativa, setorial e compartimentada sócio-territorialmente, para uma perspectiva mais universal e global.


Os riscos da ordem imposta

O risco, visível hoje claramente, é que, em nome da defesa desses valores, um Estado particular se invista unilateralmente no direito de regular o mundo todo e de normatizar, a partir do seu próprio poder militar e da sua capacidade econômica, a vida dos outros povos do planeta. Por isso, é melhor que a globalização seja mesmo “uma sociedade mundial sem Estado mundial e sem governo mundial” e que tal processo não esteja instaurando “uma ordem global conduzida por uma vontade humana coletiva” particular, até enquanto não se reúnam as condições para a consolidação de uma nova instância (ou de uma nova dinâmica, talvez seja melhor dizer assim) democrática internacional.

Um governo mundial democrático, nos moldes atuais (com um parlamento e uma instância executiva mundiais ou algo equivalente), pode não ser, contudo, a melhor alternativa. Pois, ao que tudo indica, não se trata de transplantar a realidade política vigente no interior dos atuais Estados-nação considerados democráticos para o plano internacional. A democracia realmente existente no interior das repúblicas e dos governos representativos modernos não tem acompanhado as inovações (sociais, políticas, culturais e tecnológicas) introduzidas com o atual processo de globalização. Com efeito, tais inovações têm surgido, simultaneamente, na dimensão global (como resultado de mudanças sociais macroculturais) e na dimensão local (como resultado de mudanças sociais na estrutura e na dinâmica de comunidades). O corpo e o metabolismo do Estado-nação ainda permanecem, todavia, como uma instância intermediária resistente a tais mudanças. Basta ver como estão organizados os sistemas políticos e eleitoral, as burocracias, os mecanismos verticais (em geral clientelistas) de oferta das chamadas políticas públicas e os padrões de relação entre Estado e sociedade ainda vigentes na maior parte, senão na totalidade, dos Estados-nação do globo.

Isso significa que a mudança que tem ocorrido nas duas pontas – no global e no local – ainda não atingiu plenamente o meio, a forma Estado-nação atual, embora essa forma esteja sendo ameaçada e, assim, esteja resistindo ferozmente para não ser desabilitada como fulcro do sistema de governança.


Sonhando com alternativas

Ora, novos sistemas globais de governança, para serem realmente novos, deverão ser frutos de novos arranjos de atores, de uma nova arquitetura de rede e de novos modos democráticos (de democracia em tempo real, de ciberdemocracy), conectando identidades individuais e coletivas – sócio-territoriais (comunidades), sócio-culturais (novos movimentos sociais, organizações da sociedade civil e comunidades virtuais), sócio-produtivas (novos arranjos produtivos e iniciativas de uma nova sócio-economia solidária) e sócio-políticas (novos partidos e tendências de opinião nacionais, subnacionais e transnacionais) – para além da identidade única do Estado-nação.

Estamos fazendo aqui, evidentemente, um exercício de antevisão daquilo que, na falta de uma palavra melhor, Thompson chamou de “ecumene planetária” como sistema de governança resultante da transformação cultural que está acontecendo atualmente no mundo, na transição de uma economia globalizada, ainda baseada em Estados-nação industriais, para uma nova ecologia cultural global, caracterizada por uma era pós-industrial, por uma matriz de identidade noética (científica e espiritual pós-religiosa, não mais baseada em língua e religião e em classe e nação), por uma mentalidade dinâmica complexa (pós-galileana) e por uma modalidade de governança participativa (pós-representativa) (4). Exercícios análogos têm sido feitos por vários arautos da sociedade da informação e do conhecimento ou da “nova era”, conquanto tais exercícios, em boa parte, ainda estejam, no primeiro caso, muito presos a visões unilaterais das conseqüências introduzidas pelas transformações econômicas e pelas inovações tecnológicas em curso no mundo hodierno e, no segundo caso, a visões míticas, sacerdotais, hierárquicas e autocráticas (como se a nova era devesse ser um novo reino de velhos magos) e não consigam, ambas, captar muito bem as mudanças sociais, em sentido amplo, implicadas em tudo isso.

O fato é que o processo de globalização não conduz para nova ordem alguma previsível, conquanto sua ocorrência, desconstituindo a velha ordem, destranca o futuro, permitindo que a interação global dos atores sociais construa, de fato, novas alternativas civilizatórias. Ainda que o sentido da “nova ordem” jamais seja dado pelo desejo de um ator individual, não é proibido sonhar com tais alternativas (como ensaiei, seguindo Thompson, no exercício acima).

E é melhor assim.


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.
(2) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000
(3) Mollison e Slay observam que “não deveríamos confundir ordem com arrumação. Arrumação separa... enquanto que a ordem integra.... Criatividade raramente é arrumada. Poderíamos dizer, provavelmente, que arrumação é algo que acontece quando a atividade compulsiva substitui a criatividade imaginativa...” Cf. Mollison, Bill e Slay, Reny Mia. Introdução à Permacultura. Brasília: Ministério da Agricultura e do Abastecimento / Projeto Novas Fronteiras da Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável, 1998.
(4) Thompson, William Irwin (2001). “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in “Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution”. MA: Lindisfarne Books, 2001.

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