23/05/2008

9 | GLOBALIZAÇÃO EM DISPUTA

A globalização está em disputa e essa disputa não é somente entre os neoliberais (favoráveis) e os estatistas (contrários), mas envolve uma diversidade de posições variantes e conforma novos campos políticos de convergência que superam tal contradição.

A globalização está em disputa. Várias posições se defrontam ou se confrontam hoje na cena internacional e não apenas as posições favoráveis dos neoliberais e as posições contrárias dos estatistas. Uma tentativa razoavelmente consistente e sofisticada de análise e sistematização da configuração das forças que interagem hoje em torno do tema (e do fenômeno) da globalização foi elaborada no ano passado por David Held e Anthony McGrew (2002), no livro “Globalization/Anti-Globalization”, em especial no Capítulo 8, intitulado “A nova política da globalização: mapeando ideais e teorias”.

Em suma, Held e McGrew, avançando um pouco em relação às suas próprias análises anteriores e também em relação ao que escreveram sobre o assunto Anthony Giddens e outros pesquisadores da London School of Economics, estabelecem um quadro de referência para situar e caracterizar as diversas posições existentes no cenário internacional.

Assim, em relação a cinco características principais (quais são os princípios éticos norteadores; quem deve governar; quais são as reformas essenciais; qual é a forma desejada de globalização; e qual é a modalidade de transformação política preconizada), Held e McGrew identificam seis posições distintas: os neoliberais, os internacionalistas liberais, os reformadores institucionais, os transformadores globais, os estatistas/protecionistas e os radicais.

Isso, convenhamos, é muito mais inteligente do que apenas contrapor, de um lado, os neoliberais e, de outro, os que querem evitar o desastre neoliberal, como fizeram, ad nauseam, durante toda a década de 1990, muitos ativistas políticos em debates de salão, seminários acadêmicos, manifestações corporativas, discussões partidárias e campanhas eleitorais, no Brasil e alhures.

Assim, em resumo, a tabela Held-McGrew (2002) – que procura estabelecer a comparação entre os modelos de política – seria a composição das seis tabelas seguintes [= as tabelas referidas estão ausentes da presente edição digital].


Os neoliberais A crença dos neoliberais, expressada desde o início dos anos 60 até a década passada por Hayek e outros, é a de que a liberdade e a iniciativa dos indivíduos – realizadas pelo livre mercado – devem ter a primazia em relação à vida econômica e política nacionais e, inclusive, sobre a ordem internacional. Ocorre que os neoliberais foram os primeiros a perceber o fenômeno da globalização, o que os levou a cavar um sulco mercadocêntrico de interpretação por onde escorreram as demais interpretações dos que se posicionaram ou a favor ou contra o fenômeno. Muitos teóricos e militantes políticos que ficaram contra a globalização só o fizeram porque não conseguiram distinguir entre a interpretação (subjetiva) que se consagrou e o fenômeno (objetivo) que permaneceu praticamente desconhecido durante vários anos (1).


Os internacionalistas liberais Os internacionalistas liberais são os defensores dos modelos de governança estruturados em torno da idéia de cooperação internacional e da democratização “realista” das relações entre os Estados-nação. Quase a totalidade dos governos ocidentais e dos governos de repúblicas e governos representativos modernos, são (ou se declaram como, ou adotam posturas políticas que permitiriam seu enquadramento como) internacionalistas liberais. Também participam dessa posição a maioria dos funcionários de organismos internacionais e agências multilaterais (Organizações do Sistema ONU, OMC, BIRD, BID etc.). Evidentemente, os internacionalistas liberais tomam a competição entre os Estados nacionais como um dado da realidade a ser mitigado por formas adequadas de mediação racional (2).


Os reformadores institucionais Os reformadores institucionais são mais avançados do que os internacionalistas liberais. Propõem uma reforma do sistema de governança internacional ainda estruturado sobre a idéia original da Liga das Nações e das Nações Unidas. Reconhecem as limitações do sistema ONU e admitem a necessidade de participação de outros atores para além dos Estados nacionais. Uma parte dos governos democráticos, bem como um contingente crescente de funcionários de instituições de fomento ao desenvolvimento do sistema ONU e de agências de cooperação internacional, poderiam ser enquadrados nessa posição (3).


Os transformadores globais Os transformadores globais pareceriam ser os mesmos reformadores institucionais quando fora dos governos e das instituições internacionais e agências multilaterais sustentadas por governos, se não fosse por duas diferenças muito importantes: eles se posicionam mais contundentemente contra os rumos que vem tomando o processo de globalização e eles não admitem que as formas de governança – subnacionais ou supranacionais – centradas no Estado-nação sejam as únicas possíveis. Por isso estão engajados freqüentemente em campanhas por reformas democratizantes das instituições políticas em todos os âmbitos, inclusive no local e no global. Nesta posição parecem se situar os autores do estudo em tela (4).


Os estatistas/protecionistas Sobre esses já tecemos muitos comentários nas seções anteriores. Os estatistas constituem a força mais reacionária que ainda remanesce na atualidade. São os únicos que podem ser considerados propriamente contrários à globalização (não apenas às interpretações neoliberais do fenômeno, mas inclusive ao sentido mesmo do fenômeno objetivo). Por isso, não seria muito adequado, ao meu ver, imaginar – como fazem Held e McGrew – que eles possam desejar uma forma qualquer de globalização. Os estatistas são estadocentristas e, não raro, também são estadocultistas. Grande parte das instituições executivas, parlamentares e judiciárias (sobretudo estas últimas) da imensa maioria das nações-Estados no globo estão dominadas pela cultura estatista e estão ocupadas por pessoas impregnadas por tal ideologia. Não há nenhuma alternativa possível – nem mesmo para disputar os rumos do processo de globalização, invertendo radicalmente o seu sentido para torná-lo mais justo e mais includente – que possa se constituir em aliança com os estatistas (5).


Os radicais Este é o ponto mais fraco da análise de Held e McGrew. Em primeiro lugar, porque nem todos os radicais são antiglobalização e, em segundo lugar, porque há uma aproximação, não adequadamente identificada e realçada, entre eles (ou parte ponderável deles) e os transformadores globais, em uma intensidade às vezes até maior do que entre estes últimos e, por exemplo, os internacionalistas liberais. Em todo caso, colocá-los em globo no limite do espectro (onde deveriam estar, justamente, os estatistas) não parece correto em termos de análise de posições políticas (6).

Mas Held e McGrew quiseram ir além do simples mapeamento das forças. Eles identificaram aspectos em comum nos ideários políticos de algumas posições (a dos internacionalistas liberais, a dos reformadores institucionais e a dos transformadores globais) que conformariam um possível campo de convergência em torno do que chamaram de uma (nova) ‘social democracia cosmopolita’. Desse campo de convergência não participariam – pelo menos não diretamente – os neoliberais, os estatistas/protecionistas e os radicais.

Assim, Held e McGrew elaboraram um esquema das variantes políticas a favor e contra a globalização, tentando evidenciar os padrões de influência e as zonas de pontos em comum às diversas posições, como podemos ver no Diagrama de Held-McGrew, 2002 (cf. Diagrama 1 [= os diagramas não constam desta versão digital]).

A meu ver há aqui, todavia, dois problemas. O primeiro problema diz respeito à classificação dos radicais. Os autores incluem sob tal denominação grande parte dos inovadores, sobretudo os glocalistas (a turma do ‘pensar globalmente e agir localmente’), como se fossem, todos, agentes antiglobalização – o que não é justo. Os que reconhecem o fenômeno da glocalização, no sentido em que venho empregando aqui o termo, não são antiglobalização necessariamente. Essa, aliás, é a grande novidade do fenômeno complexo, ora em curso no mundo, que chamamos em geral de globalização e que é, na verdade, uma glocalização; ou seja, a novidade da mudança social que tem como fulcro a possibilidade inédita da conexão global-local na emergente sociedade-rede.

O segundo problema se refere à tentativa de reeditar a velha e surrada solução social-democrata, agora renovada pelo atributo de “cosmopolita”. Tudo bem com o cosmopolita. O problema está no componente social-democrata, que é, na verdade, um componente estatal-democrata. Em outras palavras, a social-democracia é um estatismo social-democrata. Como diz Claus Offe, é uma “filosofia pura da ordem social” (7) que confere ao Estado o protagonismo único, exclusivo ou preponderante, excluindo ou subordinando as outras esferas da realidade social: o mercado e a sociedade-civil (ou a comunidade), ao invés de buscar a “mistura cívica correta” desses três grandes tipos de agenciamento.

De qualquer modo, o texto de Held e McGrew é um insumo importante para estimular e informar esse debate. No entanto, seus esquemas deveriam ser corrigidos para evitar alguns problemas, como, por exemplo, a confusão entre os que estão trabalhando na nova perspectiva da localização e que não gostariam de ser arrolados, juntamente com os manifestantes de Seattle, sob o mesmo epíteto de “radicais”.

Em suma, Held e McGrew deixam de considerar uma posição importante no espectro de forças: a posição daqueles que são a favor da globalização, que acham que o que está faltando é mais globalização (e não menos globalização), que compartilham de muitos dos ideais dos que eles chamam de radicais, mas que também não se confundem com os reformadores institucionais e com os transformadores globais. Esses são os que poderiam ser chamados de glocalistas.


Os glocalistas A presença dessa nova variante altera obviamente o diagrama proposto por Held e McGrew, gerando um novo esquema, como podemos ver no ‘Diagrama de Held-McGrew (2002) modificado por Franco (2003)’ [= os diagramas não constam desta versão digital]. Mas o perfil dos glocalistas, as suas características básicas distintivas e o overlapping na posição política com os reformadores institucionais, com os reformadores globais e com os radicais, só poderão ser adequadamente compreendidos após a discussão apresentada no presente estudo (8). De qualquer modo, para os que não acreditam que existam um pensamento e uma prática localistas (os glocalistas – comunitaristas inovadores – são os novos localistas, mas existem também os velhos localistas, os comunitaristas conservadores – todos mais ou menos enfiados por Held e McGrew na categoria de ‘radicais’).


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1)-(6) As notas e referências numeradas de (1) a (6) se referem aos itens análogos do Texto 2, que reproduz excertos de David Held e Anthony McGrew (2002). Globalization/Anti-Globalization. Cambridge: Polity Press, 2002.
(7) Offe, C. (1991) “A atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da sociedade” in Bresser Pereira, L.C., Wilheim, J. e Sola, L. Sociedade e Estado em Transformação. Brasília: ENAP, 1991.
(8) Ver Capítulo 3.

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